“Ninguém quer ser o vilão da própria história” – foi uma frase marcante que surgiu em uma sessão de terapia a partir da reflexão sobre autossabotagem. Essa palavra por si já é carregada de significados negativos, afinal, em uma história, quem sabota é o vilão, e como pode alguém em sã consciência criar empecilhos que prejudiquem a si mesmo?
A sessão terminou, mas a minha própria reflexão não (e depois vim a saber que nem a do paciente, já que retomamos a questão na semana seguinte). Durante meus próprios devaneios em busca de ampliar a questão, lembrei-me do poema Fausto, de Goethe. Na história, Fausto é um médico que sofria muito com a ideia de que morreria antes de conhecer tudo o que podia se saber sobre a vida, a arte e as ciências, portanto meteu-se com forças sobrenaturais para fazer um pacto com Mefistófeles (que seria o próprio diabo) para obter mais tempo de vida e, assim, mais oportunidades de obter conhecimentos.
Logo no primeiro encontro com os dois, Mefistófeles se apresenta à Fausto da seguinte forma: “Sou parte da Energia, que sempre o Mal pretende e o Bem sempre cria”. Para mim, essa é a perfeita definição do que é a autossabotagem – uma estratégia para evitar a dor imediata, mas que pode criar problemas ainda maiores no futuro.
No entanto, a mesma frase pode ter outra conotação, pois através do sofrimento encontramos a redenção. Fausto também aprendeu isso, pois no fim da obra se arrepende da profana negociação. A ironia é saber que Fausto só entende o quão valioso é nosso tempo de vida por causa de Mefistófeles. A Terapia Cognitiva Comportamental nos ensina que apenas através da conscientização de nossos problemas temos a oportunidade de mudar e criar uma vida melhor.
Aliás, nas sessões de terapia, gosto muito de usar uma imagem comum em filmes e animações antigas onde um personagem se encontra pensando e surgem ao seu lado um pequeno diabinho e um pequeno anjinho para ajudar a tomar uma decisão. Para mim, essa é outra metáfora rica para explicar como funcionam nossos pensamentos: afinal, o anjinho quer nosso bem maior e nos traz muitos bons direcionamentos, mas que nos custaria certo esforço e consciência; no entanto, sua fala discreta e suave acaba muitas vezes sendo abafada pelo ruidoso e persuasivo diabinho, que apresenta sempre um caminho mais fácil, de recompensas imediatas, mas que nos cobrará algo no futuro.
O diabinho é uma metáfora para nosso Sistema de Recompensa Cerebral, um circuito responsável pela sensação de satisfação e prazer imediatos. Frente à uma situação, esse circuito busca em nossas memórias e experiências o que nos daria maior sensação de benefício imediato, evitando a todo custo situações que gerem o desprazer. Por isso esse diabinho é barulhento e intimidador, surgindo através de pensamentos intrusivos constantes nos lembrando de situações de desprazer do passado para que evitemos uma dor.
Aquela voz interior que nos alerta que não somos bons o suficiente para arriscar em algo, mas que na verdade tem o objetivo de nos prevenir da frustração do fracasso. O desejo de evitar um conflito é para que não nos relembremos de sentimentos do passado que gostaríamos de deixar adormecidos. Talvez quando estamos abarrotados de tarefas para realizar é uma tentativa de nos convencer de que não somos preguiçosos ou desleixados como nos fizeram acreditar no passado. Ou quem sabe ficar um pouco mais nas redes sociais diminua nossa tristeza.
No entanto, o diabinho nada mais faz do que postergar o problema para que nosso “Eu do Futuro” resolva, o que pode agravar ainda mais o problema. É justamente disso que nosso anjinho pessoal quer nos prevenir. O anjinho representa nossa Racionalidade, nosso sistema cerebral que permite tomar decisões com base em nossos valores e crenças positivas.
Enquanto o diabinho diz que não somos bons o suficiente, o anjinho discretamente nos lembra que sem a tentativa também não há nem a melhora e nem o sucesso. O diabinho tenta nos convencer a evitar um conflito, mas o anjinho nos lembra que há conflitos desconfortáveis de enfrentar, porém necessários para resolver alguns problemas. O diabinho diz que somos preguiçosos se não estivermos sempre produzindo, mas o anjinho nos lembra que somos humanos, que excesso de trabalho pode causar um burnout e que necessitamos do descanso. O diabinho nos fala que redes sociais são produtoras de dopamina (o hormônio da felicidade), mas o anjinho nos relembra que esse tempo poderia ser gasto com cuidados pessoais e coisas importantes para nossa vida.
A autossabotagem é um mecanismo de defesa que pretende nos livrar de sentimentos negativos imediatos, mas que cria problemas piores para o futuro, podendo causar um sentimento de vida estagnada, insuficiência ou até de fracasso generalizado. Então, na verdade, acabamos apenas postergando a dor, a angústia e o sofrimento.
Como fazemos então para enfrentar nossas autossabotagens? A resposta é complexa, mas podemos começar a criar compromissos conosco mesmo, pautados em nossos valores. E quando falo sobre valores não estou falando daquilo que é bom ou mau, moral ou ético, mas sim aquilo que nos é importante em nossa vida. O que é importante para você? Melhorar a forma como se relaciona com sua família? Evoluir na carreira? Emagrecer? Dedicar-se a si mesmo? Decida o que é importante para você e crie compromissos capazes de te levar mais próximo do seu eu ideal.
Assumir compromissos não é fácil e normalmente cria sensação de desconforto no início, pois sair desse suposto estado de segurança é contrário ao que o Sistema de Recompensa Cerebral (nosso diabinho) nos norteia. É cansativo e inclui dizer não para muitas situações e pessoas – inclusive para você mesmo.
Se você acha que não consegue criar esses compromissos, então talvez o primeiro compromisso que precise tomar é com iniciar uma psicoterapia, pois é ali o lugar correto para descobrir de forma segura quais são os pensamentos intrusivos que interferem negativamente em sua vida e como contorná-los para dar maior significado àquilo que mais valoriza em sua vida.
Também é preciso dizer que ter compromissos não significa ter uma vida perfeita, mas sim uma vida melhor, e normalmente já pode ser benéfico o suficiente. Nem todo enfrentamento é bom, mas na experiência clínica, sabemos que a maioria das evitações são ruins.
Por fim, convido à reflexão: Quais são suas autossabotagens? Com o que anda procrastinando ou evitando? O que falta para ser o protagonista de sua própria história?
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