A mente humana está sempre preparada para tentar nos livrar de alguma dor, no entanto, construir valores significa – literalmente – aceitar que certos desconfortos podem ser necessários para uma vida melhor. Contudo, numerosas pesquisas científicas comprovam que discursos como “sair da zona de conforto” e “buscar sua melhor versão” só atrapalham. A direção para uma vida mais significativa depende de uma postura mais realista e com maior compromisso – e isso é encontrado na terapia cognitiva comportamental.
A filosofia está repleta de reflexões sobre a relação da dor com o compromisso. Sêneca, em suas reflexões sobre o estoicismo, afirma que “o homem que sofre antes de ser necessário, sofre mais que o necessário”. Há muitas formas de se interpretar essa frase, mas uma delas é entender que o fugir de um desconforto imediato pode causar um desconforto muito maior no futuro. Uma esmagadora maioria de estudos em ciências cognitivas e nas terapias cognitivas comportamentais concordam com esse ponto.
Steven Hayes em seu livro “saia de sua mente e entre em sua vida” é ainda mais taxativo: o sofrimento humano é um fato universal. Em todas as civilizações, culturas e história humana existiu o sofrimento, e, portanto, é um esforço inútil tentar exclui-la completamente de nossas vidas, nos restando aceitar uma dose suportável de dor imediata para que sofrimentos maiores não se instalem no futuro.
Pensando nisso, decidi escrever um artigo falando sobre como valores e compromissos nos são importantes para construir uma vida mais significativa. Por mais que me esforce, esse não é um tema superficial, portanto, me permiti escrever um artigo mais longo. Assim, queria fazer um acordo com você, leitor: se esse assunto te interessa, se permita também tirar alguns minutos a mais para lê-lo e, quem sabe, marcar nos seus favoritos para ter acesso a este texto no futuro, já que possui um importante exercício no final que pode te colocar no caminho da construção dos valores para uma vida mais significativa.
Construir valores requer deixar de fugir da dor
Hayes aponta em seu livro que todos os seres humanos aprendem a fugir daquilo que acredita que lhe causará um desconforto imediato – e nos tornamos muito bons nisso. Hayes chama isso de Esquiva Experiencial, ou seja, quando você evita uma experiência por saber que ela lhe causará dor, contudo, também aponta que grande parte dessas experiências poderiam te levar à uma vida mais significativa, apesar do desconforto.
Tentarei exemplificar: imagine que Helena tem problemas com ansiedade social. A amiga de Helena vai se casar e lhe envia um convite para a cerimônia e para a festa. Apesar de gostar muito dos noivos e ter ali pessoas que ela conheça, uma boa parcela será de estranhos para Helena. Só de se imaginar nas possíveis cenas de interação com estranhos a ansiedade já surge. Assim, não será incomum se Helena der uma desculpinha para tentar não ir à festa, justamente tentando evitar as situações que lhe levam à sentimentos ansiosos... mas isso também fará com que ela perca a festa de aniversário de amigos queridos.
Talvez um dos melhores exemplos da atualidade seja o uso excessivo das redes sociais. Na intenção de nos distrairmos das chateações inerentes à vida real, nos perdemos em infinitas imagens e vídeos e textos curtos das redes sociais. Porém, nos distrair com recortes de vidas supostamente perfeitas nos faz esquecer que a vida também tem imperfeições, e isso traz uma autocobrança irrealista por comparações injustas que nos faz até esquecer que a vida também é imperfeita, na maior parte do tempo pode ser um pouco chata, mas que é necessário ser vivida!
Aliás, escrevi um artigo sobre a “vida fora da internet” ser uma experiência sensorial. Vale a pena dar uma conferida também para refletir o quanto nossa vida não se passa dentro de nossa cabeça, mas sim fora, na interação com o mundo.
Mas sabe qual é o pior? Nada disso nos é novidade. Contudo, utilizamos costumeiramente a Esquiva Experiencial para criar um refúgio seguro, mas que dentro dele nada acontece. Por isso necessitamos tanto de construir valores pessoais, para termos um norte mais delineado sobre aquilo que nos leva a ter uma vida que vale a pena ser vivida.
Desmistificando alguns conceitos
Deixe-me começar desmistificando algumas bobagens que vemos por aí: primeiro que não existe essa tal de “melhor versão de mim mesmo”. Você já é a melhor versão que você pode ser neste exato instante.
Tire um momento para uma reflexão honesta (eu disse honesta, ok?): costumamos ser incrivelmente autocríticos e sabemos exatamente tudo aquilo que não estamos fazendo que supostamente nos levaria à essa utopia da nossa “melhor versão”. Contudo, desconfio que, se por um momento, suspendêssemos a autocrítica, chegaríamos à conclusão de que sempre estamos fazendo aquilo que nossos recursos externos e (principalmente) internos permitem.
A segunda grande bobagem é essa tal de “zona de conforto”. Seja mais uma vez honesto consigo próprio: a zona de conforto não é um objetivo a ser evitado, mas sim uma meta a ser atingida!
Aqui a discussão fica mais complexa que depende de uma análise mais aprofundada, mas por hora, basta saber que o discurso se baseia na ideia de que uma pessoa não sai de um suposto padrão de inação por pura preguiça e medo de mudar. Acontece que isso é um discurso muito raso que pode levar a comparações injustas e a um estado de culpabilização que só serve para destruir a autoestima de alguém para alimentar uma crença mentirosa de que a pessoa não está se esforçando o suficiente.
Então, a dica é largar a autocrítica e a autocobrança, pois eles nos geram um sentimento de ainda mais desconforto (e lembre-se que somos muito bons em fugir daquilo que é desconfortável). Que tal então substituir por termos como autorregulação e automonitoramento? Construir valores requer sim uma dose de coragem e ação, mas através de uma análise realista dos limites e das possibilidades.
O que são valores?
Para as terapias cognitivas comportamentais, os valores são princípios pessoais, individuais e fundamentais que guiam sua vida. Valores representam exatamente o que importa na sua vida e aquilo que é significativo para você.
Assim, valores não são metas que buscamos e nem objetivos a serem alcançados; em vez disso são diretrizes que podem servir como fonte de informação para que você tome decisões, dia após dia.
Vamos supor que você tenha dois valores não bem definidos para você: você gostaria de ampliar sua rede de amizades e estreitar laços sociais, mas você também quer emagrecer e por isso está cortando carboidratos de sua dieta. Nesse cenário, suponha, para seu desespero, que seus amigos do trabalho todas as semanas o chamam para o happy hour para tomar uma cerveja. Aparentemente, recusar o convite iria contra o primeiro valor (e seria uma esquiva experiencial), mas aceitar tomar uma cerveja iria contra o segundo.
Como você procederia? Qual valor teria maior peso? Seria possível ir à cervejaria e tomar um suco? Ou seria possível propor outro lugar para o happy hour? Para nossa angústia, não temos respostas claras e objetivas, sequer ações certas ou erradas. Contudo, ter seus valores mais bem definidos podem te ajudar muito a tomar uma decisão que o leve para um caminho cuja resposta, mesmo que não agrade seus amigos ou à sua dieta, seja mais confortável.
Simplificando, valores não são regras prontas que fazem decisões serem tomadas seguindo um protocolo, tanto porque criar esse protocolo seria impossível, já que nunca saberemos quais decisões precisarão ser tomadas no futuro. Valores se parecem mais com um mapa interno e com uma bússola que ajudam você a navegar pela vida, mesmo frente ao desconhecido.
Construir meus valores para uma vida mais significativa
Steven Hayes propôs, no livro “terapia de aceitação e compromisso: o processo e a prática da mudança consciente” um exercício muito simples que todos conseguimos fazer.
Imagine por um instante, que alguma mágica aconteça e tudo é possível em sua vida, basta definir o caminho que você deseja que as coisas andem e elas simplesmente acontecerão.
Então, defina um tema sobre sua vida. Pode ser família, como ser um bom pai ou mãe, ou como ser um companheiro ou companheira melhor, ou até mesmo viver um tempo sozinho. Pode ter conexão com sua profissão e carreira, em como ser um profissional melhor e ter melhores resultados. Pode ser até mesmo relativo à sua ação social e comunitária, como ajudar mais o meio ambiente ou ser mais politicamente ativo. Você define a sua área de interesse, e pode ser quantas você quiser, do modo que quiser nomeá-las.
Então, pense em termos tanto concretos que podem ser realizáveis, quanto também em termos mais gerais que simbolizem, em sua opinião, boas decisões de vida. Por exemplo: casar é um objetivo concreto que pode ser realizado e assim finalizado, enquanto ser carinhoso com o outro é um direcionamento mais geral que não necessariamente possui uma finalização.
Lembre-se que nesta etapa não precisa se preocupar com o que acha que poderia obter de forma realista, ou o que você ou as outras pessoas acham que você merece ou seja mais apropriado para você. Se preocupe apenas em saber com o que você se importa, em quais questões gostaria de trabalhar, na melhor de todas as situações.
Tire um tempo para pensar sobre isso. Como tudo na vida, o período de planejamento é muito importante. Sem isso, continuaremos tateando no escuro sem saber onde desejamos chegar. E, lembre-se: para quem não sabe para onde quer ir, qualquer lugar serve (só que não é qualquer lugar que te serve, certo?).
Uma vez que tenha chegado à algumas conclusões, que tal escrevê-las? Escrever seus pensamentos é como tirar uma fotografia que você pode olhar no futuro aquele momento congelado no tempo para relembrar e até mesmo ver detalhes que não havia visto no momento do click.
Uma vez que esse valor esteja no papel, parabéns, essa será sua bussola a partir de agora e podemos partir para o próximo passo. Vamos então recolocar os pés no chão e nos lembrar que precisamos lidar com a realidade para trazer algo do campo das ideias para a vida real.
Hayes sugere para isso uma análise gentil e sem autocobranças tanto da área que você escolheu quanto do texto escrito e, então, refletir (honestamente) sobre algumas perguntas: (1) o quanto é realmente possível que alguma coisa significativa aconteça nessa área em sua vida? (2) O quanto é importante que isso aconteça em sua vida no momento atual e imediatamente? (3) O quanto é importante que isso aconteça em sua vida como um todo? (4) O quanto você está fez nas últimas semanas de fato que te colocou mais próximo desses objetivos? (5) O quanto você está realmente satisfeito com aquilo que tem feito para atingir esse objetivo? (6) O quanto você realmente está preocupado se esta área não progredir como você deseja?
Vou dar um exemplo, que acredito ser bem comum. Vamos supor que Almir tenha feito seu check-up médico e os exames apontaram alguns pequenos desvios inadequados que, caso não observados, podem evoluir para problemas sérios de saúde daqui alguns anos. Portanto, a área da vida em questão para Almir é o autocuidado. A partir de uma profunda reflexão, Almir chega à conclusão de que deseja se cuidar melhor, incluindo exercícios físicos em sua rotina e melhorando sua alimentação.
Ok, a bússola já temos, agora vamos desenhar o mapa. Para simplificar, vamos dividir em duas subáreas os valores traçados: incluir exercícios físicos regulares e melhorar a alimentação. Tudo isso, claro, refletindo, de uma forma realista, sobre a vida atual de Almir e a vida que ele deseja ter.
Incluir exercícios físicos na rotina (pergunta 1) será bem complicado, já que Almir trabalha e faz faculdade, tendo seus horários já bem comprometidos, mas talvez seja possível incluir uma atividade física aos fins de semana. Talvez para ele (pergunta 2), não seja tão urgente fazer exercícios regularmente todos os dias, mas (pergunta 3) é muito importante à longo prazo que sejam realizados pelo menos 3 dias por semana, apesar que (pergunta 4) nas últimas semanas nem um momento dos sábados ou domingos algo tem sido usados para esse fim. Portanto (pergunta 5), Almir não está nada satisfeito com suas ações no presente momento, pois isso o está afastando da vida mais saudável que deseja ter, afinal (pergunta 6) existe uma preocupação real envolvendo sua saúde física, portanto é necessário que algo mude.
Quanto à alimentação de Almir (pergunta 1), isso é totalmente possível, pois já que a maior parte de suas refeições são em restaurantes no horário de intervalo, ele pode simplesmente escolher com mais critério o local que se alimenta. É totalmente possível (pergunta 2) tomar essa decisão imediatamente, apesar que (pergunta 3) Almir não deseja necessariamente ser fitness. Nas últimas semanas (pergunta 4) até que sua alimentação mudou um pouco, cortando refrigerantes e frituras, claro que (pergunta 5) isso não é o suficiente, mas já demonstra um compromisso. Além disso (pergunta 6), na última semana, Almir leu um artigo sobre os benefícios de se alimentar melhor, reforçando a ele a importância de que essas mudanças ocorram.
Seguindo a bússola rumo à uma vida mais significativa
Definir o tipo de pessoa que você deseja ser e os princípios pelos quais deseja viver te ajudam a identificar situações pontuais em que você tenha a oportunidade de escolher por aquilo que te colocará um pouco mais próximo de uma vida mais autêntica e significativa. Inclusive, o objetivo máximo das terapias cognitivas comportamentais é ensinar os clientes a identificarem e tomar decisões mais assertivas nesse sentido.
Assim, fica claro que definir o que é um valor não é o suficiente, é necessário criar compromissos de buscá-los. Somente assim é possível criar um valor que te leve à uma vida mais significativa.
Nesse ponto, é importante pontuar que construir valores significa também tomar novas decisões, cujas consequências talvez ainda sejam nebulosas e desconhecidas – e isso pode causar um certo grau de desconforto. Aqui é importante deixar claro que você deve também definir o nível de desconforto aceitável para você, de forma realista. Afinal, de nada adianta definir um valor e um compromisso fora de seu alcance nesse momento – isso só te causará frustração.
Se o objetivo, por exemplo, é melhorar seu acesso à recursos financeiros, isso significaria talvez trabalhar mais. Na dose correta, isso pode vir a ser bem útil, mas se essa dose for em excesso, pode trocar horas de sono e de atividades prazerosas por horas dedicadas às atividades laborais, o que pode facilmente levar à uma sobrecarga física e emocional. Dosar o seu limite com base na realidade é importantíssimo.
E, por último, nada disso é uma garantia de uma vida boa, mas definitivamente aumentam as chances de tomar boas decisões que o coloquem no caminho de uma vida mais autêntica e significativa, diminuindo as chances de se afastar daquilo que acha valoroso. Não é uma garantia, mas é o melhor que podemos buscar de forma realista. Nesse ponto, podemos citar Aaron Beck: “Pare e dê uma chance a si mesmo”, pois, “se nossos pensamentos forem simples e claros, estaremos prontos para alcançar nossos objetivos”.
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