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Foto do escritorEliezer Andreoli

Quantos ‘Eus’ existem em mim?

Atualizado: 23 de out. de 2023

De qual matéria é constituída o Eu? Quantos Eus cabem em mim?Como você pode provar que você é você? Essas são algumas das famosas perguntas sem resposta da psicologia. Claro que muitos autores já se propuseram a responder isso, mas poucos entram em consenso e, apesar de existirem pontos de concordância nas teorias, não existe uma resposta absoluta para essa pergunta. Contudo, não é um problema exclusivo da psicologia, pois a filosofia e a antropologia também se dispuseram a tentar encontrar uma resposta sem resultados diferentes.

Particularmente, acredito que responder a essa pergunta cria cisões na psicologia. Para cada autor, existe uma resposta (as vezes até mais do que uma) e cada resposta acaba culminando em uma visão diferente de ser humano e dá margem à diferentes formas de trabalho clínico ou científico (o que na psicologia chamamos de abordagem).

Para Freud, o homem é um ser desejante. Para Jung, o homem é um ser simbólico rumo à sua individuação. Para Winnicot, o homem é um ser em busca de integração de suas muitas partes. Para Rogers, o homem é um ser em busca de realização através de sua tendência à constante atualização. Para Skinner o homem é um produto do meio que o molda. Para Aaron Beck, o homem é um sistema de crenças, regras e pressupostos. E paro por aqui, já deu para perceber que a lista é longa e as respostas são muitas (e se estender a pergunta para a filosofia, este pequeno artigo poderia ter a pretensão de tornar-se livro).

Gostaria então de propor uma outra visão, fora das teorias, como se em um bate papo despretensioso, apenas pensar sobre, sem a obrigatoriedade de uma definição científica, sobre a pergunta: Quantos Eus existem?

Quando o eu passa a pensar no Eu?

Lembro-me perfeitamente quando eu (o autor) passei a pensar sobre o Eu. Em estudos acadêmicos anteriores, já havia tido a chance de pesquisar as teorias do Eu por Freud, Jung e Skinner, mas nada muito aprofundado. O irônico, foi que apenas fora da academia, em um treinamento corporativo contratado pela empresa na qual trabalhava na época, que haveria de me despertar para a profundidade da questão.

Naquele treinamento, foi apresentada a teoria da Janela de Johari – um clássico entre administradores. Apesar de hoje entender como uma teoria simples sobre o que é o Eu, para aquela circunstância funcionou muito bem (e entendo o motivo que leva treinadores corporativos a gostar tanto de incluir esse conteúdo em seus conteúdos).

O nome Johari é uma mescla dos nomes dos autores da teoria: Joseph Luft e Harrington Ingham. Apesar de ter pesquisado bastante (talvez não tanto quanto deveria) esses nomes são descritos como psicólogos e ligados à poucos livros das décadas de 1950 e 1960, sendo a Janela de Johari um artigo escrito para uma revista voltada à educação de trabalhadores dos Estados Unidos. Na verdade, pouco importa, pois foi na apresentação da Janela de Johari que levei para casa a pergunta: Quantos Eus na verdade existem?

Estes dois psicólogos organizacionais propõem que existam 4 Eus: O Eu Aberto – aquele que eu e outras pessoas percebem e reconhecem; O Eu Oculto – aquele que apenas eu conheço e o outro não; O Eu Cego – aquele que apenas os outros percebem e reconhecem, mas é invisível a mim; e o Eu Desconhecido – aquele que ninguém consegue perceber ou reconhecer.

Devo admitir que é uma teoria sensacional para o objetivo que se propõe, ensinar colaboradores de uma instituição a se perceber, perceber e compreender outras pessoas como um outro indivíduo e entender onde seu comportamento contribui ou concorre com a equipe trabalhadora.

Isso é fantástico, pois os autores renunciam a toneladas de escritos filosóficos, antropológicos e psicológicos que discutem à exaustão o Eu sem chegar à conclusão alguma, mas sem necessariamente descartar tudo, condensando em uma teoria simples e elegante com um objetivo claro e definido que cumpre muito bem seu papel no ambiente que é empregado.

Não há como negar a genialidade da Janela de Johari. Mas... obvio que para uma mente pensante e inquieta como a minha, essa seria apenas o chamado à aventura para refletir até onde iria a toca do coelho.


Quantos Eus existem ao me olhar no espelho

Sinto que para a pergunta ‘Quantos Eus existem’ uma resposta perfeitamente aceitável é: ‘infinitos’.

No entanto, também sinto que esta seria a resposta de quem gostaria de terminar abruptamente uma conversa. Tanto porque, infinitos me parece um número absurdamente grande, utilizado apenas quando desejamos por um fim a uma discussão abstrata sem qualquer fim pragmático.

Ao mesmo tempo que ‘infinitos Eus’ é uma resposta insatisfatória, talvez também seja completamente satisfatória. Este é definitivamente um dos muitos paradoxos da psicologia.

Talvez a dificuldade de responder à esta pergunta é justamente pela necessidade concomitante de lidar com a angústia do não-saber enquanto se pensa sobre ela. Contudo, algo me diz que o mais importante sobre a pergunta não é a resposta definitiva, mas sim a busca por ela (e, consequentemente, também lidar com a angústia do não-saber).

Afinal, para quê saber disso? Se eu tenho em mãos meu registro de identidade ou carteira nacional de habilitação, posso muito bem responder à questão: conforme demonstra o documento, Eu sou ‘fulano de tal’. Acontece, caro amigo e cara amiga, que isso é insuficiente – nossas paixões, romances, desamores, decepções, histórias, conquistas, desventuras, simplesmente não cabem em qualquer aparato documental. É nessa hora, inclusive, que podemos até questionar o que seja um indivíduo, mas acho que este é outro questionamento que é demais para esse pequeno texto.

O fato é que não existe um número determinado para a quantidade de Eus que existem, mas podemos perfeitamente aceitar que existe um Eu para cada situação e interação. Você pode admitir em sua cabeça que existe um Eu que ninguém conhece, pois na solitude fazemos coisas que são intrinsecamente nossas – eu (o autor), por exemplo, adoro ouvir música alta e as dançar, mas na presença de outras pessoas tendo a entender que isso as incomodaria em um ambiente que não seja de um festa.

Também existe aquele Eu que só uma única pessoa conhece. É inclusive muito fácil de provar. Quantas vezes já lhe aconteceu de alguém afirmar que você lhe disse ou fez uma coisa específica, sendo que você não se recorda nem reconhece as palavras ou atos sendo seus? O irônico é saber que talvez você esteja certo, as palavras ou atitudes talvez jamais partiram de você e se encontram unicamente no campo da fantasia da outra pessoa; ou talvez seja um Eu tão destoante do seu Eu atual que é irreconhecível, mesmo sendo factual. E isso é curioso, pois demonstra que há uma versão do seu Eu que só existe na memória ou na fantasia do outro.

Vamos propor um exercício de imaginação. Hipoteticamente, você realiza uma reunião, com um amigo, uma amiga, um amor, uma paixão, um parente próximo, um parente distante, um colega de trabalho, um colega de estudos, e mais quem você achar relevante. Ante todos, você revela que o motivo daquela reunião é que respondam uma única pergunta: quem é você. Perante tal situação hipotética, tenho certeza de que você consegue pensar em muitas características que essas pessoas imaginárias reunidas concordariam sobre quem é você, mas também incluirão características que apenas um ou outro conhece e até mesmo características que são desconhecidas por você. E esse ‘Eu’ descrito pelos reunidos, ainda será diferente daquele que você encara o reflexo no espelho todos os dias.

Contudo, caso você fizesse essa hipotética reunião todos os anos, sempre no seu aniversário (por exemplo), tenho a impressão de que algumas características permanecerão e outras serão esquecidas ao mesmo passo que outras novas ainda poderão ser reconhecidas.

Pior, caso você fitasse seu próprio reflexo no espelho antes e depois desta hipotética reunião, sou levado a crer que você encararia dois Eus diferentes: um portador das expectativas perante as incertezas e inúmeras possibilidades imaginadas sobre o evento; e outra modificada pelo encontro que quebra as expectativas e o faz ter que encarar a realidade das respostas apresentadas.

É nesse ponto que tendo a concordar com Heráclito quando diz que jamais nos banhamos duas vezes no mesmo rio: porque ou o rio é diferente ou nós somos diferentes... Aliás, pensando bem, melhor manter essa reunião apenas na imaginação, ou, no máximo, deixar para que roteiristas a empreendam em algum filme, daquelas comédias românticas enlatadas e ruins que adoramos assistir.

Por que buscar por uma resposta que não existe?

Lembro-me da primeira aula de psicologia que tive na universidade. Um professor debochado (porém, muito querido) sentou-se sobre a mesa (tendo a pensar que odiava cadeiras) e disse que na psicologia havia duas máximas: a primeira é que nada muda – uma pessoa tem uma personalidade imutável, e não importava sob quais circunstâncias, as pessoas não mudam sua própria essência; a segunda máxima é que tudo muda – que ao longo da vida, devido a pressões internas e externas, todo mundo evolui e isso significa mudar, não necessariamente para a melhor. Concluiu o professor, que sim, eis o primeiro, e talvez mais importante, paradoxo da psicologia que deveríamos enfrentar – e tal qual um paradoxo, por definição, não havia uma resolução definitiva a ela.

Talvez esta foi uma frase que mais me marcou, pois acredito piamente que o ser psicólogo é tanto acreditar na mudança do ser humano tanto quanto acreditar que cada um deve buscar sua essência e não abrir mão dela.

Talvez a sua essência seja uma parte integrante e nuclear do seu Eu, mas não apenas isto. Todas as experiências de vida, emoções positivas e negativas, histórias bonitas e desventuras, amores e desamores se unam a esse núcleo formando algo novo e sempre mutável. Ou seja, tudo o que viveu até aqui transforma você em... Você... e continuará te transformando.

Talvez algumas partes do seu Eu você guarde para si próprio (e no máximo para seu divino na qual acredite), outras partes abre para as pessoas com as quais convive, e apenas algumas das partes mais importantes para aquelas pessoas mais queridas e caras em sua vida.

Talvez apenas um grande amor o conhecerá em suas facetas mais sublimes e também as mais condenáveis. Talvez seja no amor que revelamos quem somos realmente, até para nós mesmos. Sem as máscaras sociais, não é raro nos surpreender com nossas próprias potencialidades e deficiências e talvez essa seja o mais próximo que chegamos do nosso verdadeiro Eu que nem o eu conhece.

O fato é que pensar sobre ‘Quantos Eus Existem’ pode ser até mais importante do que pensar sobre ‘Quem Sou Eu?’ Tanto porque a segunda pergunta depende integralmente da resposta da primeira – e como já determinamos que a primeira pergunta não tem a resposta, acho que sequer a última.

Sou inclinado a acreditar que se você manter um diário e todos os dias responder à pergunta: ‘Quem Sou Eu?’, a cada página haverá um Eu diferente, com características similares, mas essencialmente diferentes.

É nesse ponto que invoco a filosofia clássica, onde, por causa da constante transformação do ser, não é possível uma definição à pergunta ‘Quem Sou Eu’, já que o Eu muda constantemente, inclusive e até mesmo quando penso nesta questão. Só é possível definir Quantos Eus Existem quando nenhum outro Eu tenha a possibilidade de emergir, ou seja, quando a vida finda. Antes disso, as perguntas são mais importantes do que as respostas.

E... talvez... apenas talvez... seja esta a hora de lhe pedir desculpas, leitor, por essa reflexão que vai do nada para lugar algum, mas que em algum ponto, talvez, e apenas talvez, tenha feito minhas próprias indagações agora também ser as suas. E se isso aconteceu, alegre-se, pois se questionar sobre isso causa sim a angústia do não-saber, mas também te levará à outros patamares de relacionamentos entre você com seus muitos Eus.

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